Artigo do Padre João Medeiros descreve os martírios de Cunhaú e Uruaçu

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João Medeiros Filho
Padre
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Na primeira metade do século XVII, parte do Nordeste brasileiro esteve sob o domínio holandês, concentrando-se na área de produção açucareira. No início de 1640, a ocupação neerlandesa sofreu grande revés com a queda dos preços do açúcar. A Companhia das Índias Ocidentais, gerenciadora da exportação, passou a exigir o pagamento de dívidas contraídas pelos senhores de engenho e produtores rurais, decorrentes de empréstimos concedidos, durante o governo de Maurício de Nassau. A cobrança e as modificações na política financeira dos Países Baixos para o Brasil motivaram a revolta dos luso-brasileiros. A partir de 1644, teve início um movimento para expulsão dos holandeses, chamado de Insurreição Pernambucana ou Restauração, como preferem alguns historiadores. Foi nesse contexto que, em 16 de julho de 1645, ocorreu o massacre do Engenho de Cunhaú, município de Canguaretama (RN). Ali, católicos participavam da missa na Capela de Nossa Senhora das Candeias. Forças neerlandesas, indígenas janduis, potiguares e outros opositores do regime português, liderados por Jacob Rabbi, invadiram o templo e mataram os fiéis, inclusive o celebrante Padre André de Soveral. Em Uruaçu (São Gonçalo do Amarante/RN), a chacina ocorreu em 3/10/1645, tendo sido trucidados Padre Ambrósio Ferro e várias pessoas.
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Historiadores generalizam, apontando os holandeses protestantes (sem identificar as igrejas às quais pertenciam), como os responsáveis pelas mortes de Cunhaú e Uruaçu. Estudos recentes vêm mostrando que não foram somente protestantes e holandeses os autores do massacre em território potiguar. Cientistas religiosos afirmam que nem todos os neerlandeses habitantes do Nordeste eram protestantes. Havia católicos, judeus e descrentes. Consoante Frans Leonard Schalkwijk (em “Igreja e Estado no Brasil holandês”), existiam índios convertidos ao protestantismo, que se aliaram aos neerlandeses para se libertar do jugo português. Dentre os indígenas, havia seis membros de tribos potiguares, que estudaram na Holanda e aqui fundaram a Igreja Reformada Potiguara (1625-1692). Escreve Schalkwijk: “A história do protestantismo indígena durante a ocupação holandesa está registrada nos arquivos de Amsterdã e Haia.”
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Há pesquisadores, dentre eles Francisca Jaquelini de Souza, que se contrapõem a essa opinião, afirmando que as congregações evangélicas sediadas em Recife não possuíam filiais no RN. Outros autores relatam, indo na direção de Schalkwijk, que na província ocupada floresciam denominações protestantes de inspiração franco-inglesa e holandesa, assim como a religião judaica. Segundo F. Varnhagen, “Nassau era liberal, tendo concedido liberdade religiosa. Daí, resulta a fundação da primeira sinagoga em continente americano, no Recife. Várias fontes atestam que Jacob Rabi, de origem judaico-alemã, foi um dos líderes do morticínio.
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É inegável o testemunho heroico de vida cristã dos mártires, não obstante existir motivos alheios à religião, que contribuíram para a morte. Há indícios de que o trucidamento foi perpetrado também como represália à Coroa Portuguesa, à Inquisição e punição aos revoltosos contra as medidas tributárias impostas pelos Países Baixos. Este último motivo ajuda a explicar a escolha da execução em zonas rurais. Desses fatos, infere-se que para a matança concorreram razões religiosas e sociopolíticas. Decorridos quase cinco séculos, torna-se difícil recompor a verdade histórica do morticínio. Se foram os protestantes, a que denominações pertenciam? Eram apenas neerlandeses e índios?
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Entretanto, depreende-se das fontes disponíveis que as vítimas foram massacradas por sua fé, apesar de outras motivações: reação ao Padroado, à Inquisição e cobrança aos rurícolas das dívidas contraídas. Tais fatores não são inerentes à fé cristã. Há de ressaltar que os simples católicos da época sequer tinham conhecimento ou consciência do regime concordatário português, não podendo responder por atos das autoridades civis ou eclesiásticas. Houve extrapolação sociopolítica, atingindo a dimensão religiosa. A execução das vítimas nos locais e momentos referidos prova esse excesso. Se não havia ódio à religião, por que os assassinatos só atingiram os católicos? O martírio tem uma tripla conotação: a) repulsa ao Estado português e ao Padroado inquisitorial, b) vingança aos inadimplentes luso-brasileiros de empréstimos e c) perseguição à fé cristã. As razões econômico-políticas não invalidam o martírio daqueles que “deram o seu sangue, louvando o Santíssimo Sacramento”, segundo Monsenhor Paulo Herôncio de Melo, a quem se deve notável registro do morticínio. Os mártires viveram as palavras de Cristo: “Não temais os que matam o corpo, mas quem pode matar a alma” (Mt 10, 28).
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